10 – Uma Reflexão

O Conhecimento é o terror que a Ignorância oculta em suas densas e escuras águas. Isso, ao menos, para aqueles que têm medo de conhecer.

De fato, o Conhecimento pode estremecer as bases de nossas crenças mais fundamentais, nos levando a perder, um pouco, a nossa percepção de Eu. Crescemos no meio de nossas famílias e aprendemos costumes e ideias em nossos grupos sociais, e isso, ao que parece, nos dá uma ideia de quem nós somos; nos dá uma consciência de pertencimento. Essa noção de, supostamente, saber quem é, dá um solo firme e seguro para o sujeito fincar seus pés; é um ambiente controlável e previsível. No entanto, ao descobrir que o mundo pode não funcionar do jeito em que se aprendeu a crer, o chão se torna instável, o coração se enche de dúvidas e o medo pode tomar conta.

Todos querem mandar no mundo, como diria a música do Tears for Fears (Everybody Wants to Rule the World), todos querem estar certos, todos querem ser os senhores da razão. O mundo lá fora pode ser perigoso, e as correntes de seus mares podem arrastar o sujeito, tão acostumado com uma forma de pensar, para lugares muito heterodoxos, ou mesmo profanos. O medo de imaginar que ideias e entendimentos há muito estabelecidos podem ruir da noite para o dia, causa angústia e repulsa por aquilo que é desconhecido. Então o pavor dos angustiados formará grupos que reforçarão suas crenças, buscando, de algum modo, uma espécie de pureza fundamental sobre o funcionamento da vida. Esse tipo de fundamentalismo enxergará qualquer outro tipo de crença como erro.

Em um mundo onde “todos estão sempre certos” há divisão e, possivelmente, falta de respeito pelo que é diferente. Pensar e repensar o nosso modo de crença é cansativo e gasta energia, além de não ser instintivo. É mais fácil repelir o conhecimento daquilo que possui evidência, entregando-se a uma total negação deste do que procurar entendê-lo. Mais fácil ainda é deixar com que pessoas mais engajadas pensem por todos.

Em uma realidade onde crenças bem estabelecidas se tornam instáveis, é provável que sempre apareçam aqueles sujeitos mais empenhados em defendê-las das ameaças das novas descobertas, dos novos conhecimentos. Bradam contra tudo aquilo que vai contra sua visão de mundo, mesmo que haja evidência de que sua crença não se sustenta. Pode ser que uma dessas pessoas, tão comprometidas com “suas verdades”, seja grosseiramente carismática, possuindo o conhecimento dos anseios de sua gente e daqueles que consideraríamos simples. A massa, aturdida e amedrontada com o tempo presente, tão cheio de novos pensamentos e crenças conflitantes, pode não saber bem para onde ir. Possivelmente ignorará as evidências do mundo real e se lançará nos braços do líder forte, que a protegerá de toda “dúvida malvada”.

Franz Neumann (2017, p. 121-122) irá chamar essa identificação afetiva das massas com o líder, de identificação cesarística. Segundo o autor, tal identificação possui

um papel na história quando as massas estão em uma situação objetiva de perigo, quando as massas são incapazes de entender o processo histórico, e quando a angústia ativada pelo perigo se torna angústia de perseguição neurótica (agressiva) através da manipulação.

É curioso pensar que em uma realidade onde o medo do desconhecido e do diferente impera, um certo tipo de pessoa apareça com certa frequência. Hannah Arendt chamará de ralé aquela gente “no qual são representados resíduos de todas as classes” — uma espécie de restolho dos ricos, da classe média e dos pobres —, que bradam “sempre pelo ‘homem forte’, pelo ‘grande líder” (Arendt, 2012, p. 159). Essa ralé, segundo a autora, é um grupo excluído da sociedade e da representação política, e, por causa disso, buscam ações extraparlamentares, além de sentirem uma “inclinação de procurar as verdadeiras forças da vida política naqueles movimentos e influências que os olhos não veem e que atuam por trás das cortinas” (Arendt, 2012, p. 161). Nesse caso, ao que parece, a ralé tem um pensamento conspiratório que pode levá-la a ter uma “autopercepção de vítima e de herói simultaneamente” (Lewandowsky; Cook, 2020).

Pode ser que a ralé, no sentido arendtiano, auxilie as massas na identificação com o líder cesarístico. Além disso, é bem possível que, tanto a ralé, quanto seus líderes, compartilhem crenças, sendo, eles mesmos, vítimas de suas tolices. Porém, o fato de serem vítimas de suas próprias crenças não os eximem das culpas de suas crueldades e autoritarismos; cada pessoa é responsável pelo que faz. No entanto, por acreditarem em suas ilusões irrefletidas, o discurso da ralé ganha força no meio dos incautos. Por, de fato, se verem como “heróis perseguidos”, os líderes da ralé se tornam em seres apaixonantes e desejados. O ápice do Líder é quando ele mesmo se personifica como a imagem de determinado movimento, se tornando inquestionável. Arendt (2012, p 511) afirma que

a suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento — agir como defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta através da qual o movimento se liga a esse mundo. O Líder representa o movimento de um modo totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo Líder, mas é a sua própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa identificação do Líder com todo sublíder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os sinais mais visíveis da grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. Um tirano jamais se identificaria com os seus subordinados, e muito menos com cada um dos seus atos; poderia usá-los como bodes expiatórios, deixando, com prazer, que fossem criticados para colocar-se a salvo da ira do povo, mas sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos. O Líder, ao contrário, não pode tolerar críticas aos seus subordinados, uma vez que todos agem em seu nome; se deseja corrigir os próprios erros, tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele; se deseja inculpar a outros por esses erros, tem de matá-los. Pois, nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava sendo representado por um impostor. 

Parece óbvio que o Líder, para proteger sua imagem ilibada de coragem e força, de modo a manter forte o seu movimento contra outras crenças e, principalmente, contra aquilo que é, de fato, real, se utilizará de estratégias desinformativas, ou para atacar opositores, ridicularizando-os e manchando suas reputações, ou para ocultar e dissimular possíveis falhas de caráter e inconsistências em seus discursos. Tudo isso é potencializado pelo uso das mídias sociais, que repetirão, à exaustão, quer seja por meio de memes, ou mesmo por produções audiovisuais bem-feitas, tais informações. Daniel Kahneman afirma que a repetição frequente é uma forma confiável de fazer as pessoas acreditarem em falsidades, e que não é necessário repetir “a afirmação inteira de um fato ou ideia para lhe dar uma aparência de verdade” (Kahneman, 2012). Basta temperar a mentira com toques de verdades factuais, retirando algumas coisas de contexto. Kahneman (2012), em outra parte, diz:

[…] prestamos mais atenção ao conteúdo das mensagens do que à informação sobre sua confiabilidade, e como resultado terminamos com uma visão do mundo em torno de nós que é mais simples e mais coerente do que os dados justificam. Pular para conclusões precipitadas é um esporte mais seguro no mundo de nossa imaginação do que é na realidade. 

Em um contexto de hiperinformação, onde as mídias sociais são estruturadas para prender a atenção do usuário a todo custo, torna-se difícil refletir e pensar criticamente sobre o mundo ao redor e sobre suas nuances. A distração é incentivada e vendida a todo momento, e todo conteúdo apresentado é esvaziado de profundidade, preenchido com opiniões rasas, pouco embasadas. O sensacional irrefletido torna-se regra, e qualquer reflexão sobre o que se consome nas redes pode ser malvisto ou ignorado. Hoje “percebemos a realidade quase que exclusivamente por meio da tela digital. A realidade é, agora, apenas uma seção na tela. No smartphone, a realidade é tão reduzida que suas impressões não contêm mais um momento de choque” (Han, 2023, p. 95). Sem o momento de choque, a reflexão diminui. Por consequência, os sujeitos ficam vulneráveis às ideias esquisitas e perigosas. A distração vendida a granel facilita o trabalho daquela ralé angustiada pelas possíveis mudanças do mundo. A internet se transforma em um ótimo meio para comunicar a outros sobre os perigos do “novo mundo”, além de ser um ótimo caminho para vender a imagem de supostos heróis que lutarão pela manutenção daquilo que acreditam ser o certo.

O Conhecimento pode assustar em um primeiro momento, mas ele lança luz sobre áreas obscuras da vida. O indivíduo pode achar arriscado perder sua noção de pertencimento, e isso pode levá-lo a atacar ou a se esconder; ele pode, inclusive, fugir. Mas é no smartphone que o sujeito encontra um lugar seguro para preservar suas crenças, já que esse aparelho “nos protege da realidade de forma maximamente eficaz, na medida em que remove completamente o olhar que o outro apresenta” (Han, 2023, p. 96). Talvez a possibilidade de reflexão se dê apenas no mundo real, na confrontação com aquilo que está diante e ao redor de nós, e não atrás de uma tela. Observar a realidade circundante, se libertar das telas, poderá expandir nossa visão para além de nós mesmos, nos permitindo conhecer e ver o outro, que é semelhantemente diferente, e diferentemente semelhante.

Admitir que sua crença está possivelmente equivocada, ou mesmo completamente errada diante da realidade dos fatos, pode ser bem doloroso. É preciso coragem, prudência, humildade e honestidade para consigo mesmo para fazer tal coisa. Cabe dizer que isso não é uma ação instintiva, já que tendemos a proteger o que acreditamos sem pensar muito. Daí a necessidade de contínua reflexão e de mente desacelerada. E isso é um desafio constante.


Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 

HAN, Byung-Chul. A Crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2023.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. [S.L]: Objetiva, 2012. 

LEWANDOWSKY, Stephan; COOK, John. O Manual das teorias da conspiração. [S.L]: Center For Climate Change Communication, 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/biotech/wp-content/uploads/sites/265/2021/05/Guia-Teorias-da-Conspiracao.pdf. Acesso em: 05 maio. 2024. 

NEUMANN, Franz. Angústia e Política. In. Dissonância: Teoria Crítica e Psicanálise
Campinas, n. 01, p. 104-154, 1º Sem 2017. 

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