I
Etterbelle era como uma força da Natureza. Delicada, esguia e de longos cabelos dourados, voava pelos céus do mundo, sempre sorrindo e alegre. Ninguém sabia de onde ela vinha, e erroneamente a chamavam de fada. Mas o que todos sabiam é que a criatura tinha o costume de aparecer repentinamente diante dos desavisados para lhes dar felicidade. Antes que soubessem seu nome, ela desaparecia num piscar de olhos, deixando encantamento e fascínio nos corações abençoados. Aqueles que sabiam de sua existência a esperavam com ansiosa expectativa, mas esperavam à toa. Etterbelle aparecia apenas para quem não a aguardava, e todas as suas manifestações eram ao acaso. Por isso ela também foi chamada de Felicidade Inesperada.
Ora, a felicidade que Etterbelle oferecia não era qualquer coisa. Ela enchia os corações de seus agraciados com algo completo e cheio de sentido, esperança e consolo. Quem recebia tamanho presente, após algum tempo, passava a lembrar com nostalgia do dia da imprevista alegria. Alguns ficavam satisfeitos apenas com isso, porém outros queriam reviver o momento.
Conforme o tempo passava, não demorou muito para surgirem boatos sobre como invocar Etterbelle. Uns diziam: “coloquem biscoitos amanteigados na janela que ela vem”, enquanto outros afirmavam que bastava estar triste e desejar, com muita força, a sua presença. Nada disso funcionava, pois Etterbelle não estava presa a crendices e nem a fórmulas mágicas. Entretanto, o desejo pela Felicidade Inesperada crescia voluptuosamente, e um grande vazio se formava nos corações dos homens e mulheres do mundo.
Logo os boatos, antes tão inocentes, se transformaram em ideais e movimentos. Rituais elaborados, de aspectos religiosamente macabros, surgiram, e cada um pensou saber, ao seu jeito, o que era certo e errado. Por causa disso, muitas brigas e desentendimentos aconteceram, mas a única coisa que era unanimidade entre pensamentos tão opostos, era a necessidade de ser feliz a qualquer custo.
Etterbelle passou a ser perseguida com violência, e, por ser delicada e sensível, se afastou daquela humanidade tão cheia de suas certezas certíssimas. Porém, mesmo apartada de todos, caçadores de fama conseguiram rastreá-la. Horrorizada com aquele tipo de gente, passou a se esconder em nuvens escuras, ou em topos de grandes montanhas. Mas, ainda que estivesse com medo, seu coração queimava por encontrar alguém puro para compartilhar felicidade e realizar um desejo. Então, vez ou outra, se arriscava e saía por aí para alegrar alguma alma pura.
II
Conhecer o bem e o mal e definir, para si mesmo, o que é certo e errado, não pareceu ser uma boa coisa para a raça humana — talvez não estivessem preparados para isso. Ora, desde que o ser humano passou a questionar a sua própria realidade e a natureza das coisas, tendo uma suposta consciência avançada, ele decidiu usar tamanho poder mental para se ver como senhor de si, não aceitando ninguém acima. Não é preciso dizer que tal atitude levou a discórdias, guerras e assassinatos.
E foi numa guerra de níveis monumentais que o pai de Otto Mastrini, Luca, foi morto. O corajoso capitão Mastrini, como Luca era chamado, não concordava com aquele conflito louco, no entanto, sentia-se responsável por seus amigos e compatriotas, por isso se viu obrigado a entrar naquela guerra. Viu muitos morrerem, e seu peito doía ao pensar que tudo aquilo era devido a líderes ambiciosos, que não viam limites para seus impulsos egóicos. Luca faleceu ao comandar uma potente fragata. Sofreu um forte bombardeio de pequenos aviões, e heroicamente se esforçou para salvar o máximo de vidas que podia. O capitão Mastrini deixou uma esposa e um filho de dois anos.
A resolução da guerra trouxe vitória para um lado e tristeza e derrota para o outro. Entretanto, com o fim das bestialidades, a tão desejada paz não veio; muito pelo contrário: o sentimento de ódio e mágoa predominou, tanto entre os derrotados quanto entre os vitoriosos. E foi naquele mundo dividido e complicado que Otto cresceu.
Quando Otto completou oito anos, sua mãe, Janaína, ficou gravemente doente. Eles não tinham muitas economias e o seu país parecia ter esquecido da família do bravo capitão Mastrini. Sem ter como conseguir tratamento adequado, Janaína logo morreria. E, de fato, não demorou muito para Otto se ver órfão.
O pequeno Otto passou por inúmeros abrigos e orfanatos, e a tristeza foi a sua companhia diária, além da fome. Havia outras crianças tão tristes quanto ele, mas muitas encontravam apoio umas nas outras. Porém, mesmo assim, existiam aquelas que preferiam a solidão, e Otto se compadecia delas. Foi então, num dia frio, enquanto Otto vagava por um beco e pensava nos solitários, que Etterbelle o encontrou.
Naquele tempo Etterbelle era só um rumor antigo, mas o menino lembrava das histórias que sua mãe contava. A criatura brilhante, de olhar meigo e de movimentos gentis, deu um longo e puro sorriso que fez o coração do menino aquecer. Otto gaguejou e gaguejou de tão deslumbrado que estava. Etterbelle então lhe deu um simpático “olá!”.
— Vo-você é a… a… Fada da Alegria! — Os olhos de Otto ficaram brilhantes com as lágrimas que começavam a brotar.
— Fada?! Hmm Não sei o que é fada… Se é coisa boa, então talvez eu seja isso! — O sorriso de Etterbelle era cada vez mais cativante. Então ela se inclinou bem para o garoto: — Você me parece ser um menino bem triste. O que quer que eu te faça?
A pergunta pegou o garoto de surpresa, e apenas uma coisa vinha em seu coração.
— Bem… Eu gostaria de ter meu pai e minha mãe de volta. Eu queria eles de volta… Mamãe dizia que papai era um bom homem… eu… eu queria os dois… eu queria ver papai… — O menino começou a chorar em silêncio. Então Etterbelle colocou sua delicada mão no rosto do menino, e, secando suas lágrimas, disse:
— Meu pequeno, infelizmente não posso reverter a morte. Mas posso recuperar a última lembrança que você tem de teus pais. Uma lembrança que está bem guardada numa parte esquecida da tua memória.
Então, na mente do menino apareceu claramente a lembrança de Luca e Janaína se abraçando e sorrindo um para o outro. Naquela memória Otto viu que seus pais o olhavam com profundo orgulho. Os pensamentos dos dois ecoaram na cabeça da criança, e eram melodiosamente harmonizados, e diziam: “Ele vai ser um bom rapaz!”. Após isso, Otto viu os brilhantes olhos de Etterbelle, que confirmaram os pensamentos dos pais:
— Sim! Você é e será um bom rapaz! Mas haverá dificuldades e percalços em teu caminho; haverá alegrias e tristezas… E você sentirá raiva, Otto… por muitas vezes. Mas não perderá a virtude. Será sensível às coisas da vida e terá uma bela família… E que família! Eu sei que você não viveu o tempo que desejava com teus pais; mas eis que te dou uma alegria contagiante! Ela será sombra e abrigo para quem estiver triste. A felicidade que te dou é temperada, sim, com um pouquinho de tristeza. Isso faz com que as coisas tenham sentido. Alegria pela alegria é fútil, e não te faz pensar a vida. Seja feliz! — A voz de Etterbelle era suave e pareceu penetrar no fundo do coração do menino. A criatura sorriu, e sua luz e perfume o envolveram, e logo uma paz, além de consciente alegria, encheu o interior de Otto. Naquele momento o menino pareceu ter entendido algo da vida. Etterbelle o observou com visível prazer.
— Por alguma razão, eu me afeiçoei a você, menino!
— Ah! — A felicidade de Otto era transbordante — Então eu… então eu posso te apresentar aos meus amigos? Poxa! Eles precisam tanto disso que você me deu!
Etterbelle sentiu uma triste pontada no coração ao ouvir aquele pedido tão sincero. Já era arriscado demais aparecer para o garoto, e seria ainda mais perigoso aparecer para outros tantos.
— Ai! Otto! Eu não posso fazer isso. Eu queria muito te acompanhar e alegrar teus amigos, mas… Olha, meu pequeno, tem gente que ainda me caça nesse mundo. Gente que acha que pode me controlar; que me vê como uma espécie de objeto que realiza todo e qualquer tipo de desejo. Se eu aparecer demais… Eu não quero nem pensar… — a voz de Etterbelle era doce, mas continha uma pitada de medo. Otto pareceu compreender, apesar de frustrado:
— Ao menos seria legal ter você por perto para conversar… Os adultos não me dão muita atenção… — Etterbelle estava sensibilizada pelo menino e seu coração de manteiga logo derreteu:
— Tudo bem, pequeno Otto! Sempre quando quiser conversar, vá para um lugar mais discreto, como este beco. E não precisa me chamar; eu saberei te encontrar.
Otto deu um grande sorriso e abraçou fortemente Etterbelle. A criatura sentiu ternura naquele gesto, e beijou a cabeça do menino tal qual uma mãe faz com seu filho. Depois disso, o garoto voltou sorrindo para o abrigo, e escondeu de todos o motivo de tão grande alegria.
III
Luciano Cambota era um banqueiro bem sucedido; tinha casas, carruagens e bons negócios. Era um homem abastado e respeitado, mas, no alto de seus quarenta anos, vivia solteiro e amargurado. Ora, as raízes de sua aflição estavam em sua juventude, pois desde novo foi fissurado por Leila Amélia, mulher rica, dona de seu próprio nariz e cheia de pretendentes. A paixão de Luciano era tão grande que ele não se cansava de cortejar a então jovem. Alimentava-se de fracas esperanças de que, um dia, Leila cederia e o aceitaria como namorado e, por fim, como marido. No entanto, Leila nunca viu interesse no pobre rapaz.
De repente Leila se casou com um rico estrangeiro e foi morar em outro país. Isso pegou a todos de surpresa, principalmente a Luciano. Enquanto a inalcançável Leila foi viver uma vida feliz e rica, o mundo de Luciano pareceu desabar. Desde então o banqueiro ficou remoendo o que chamou de perda, e povoou sua mente com ilusões do que poderia ter sido. Tais pensamentos, cada vez mais obsessivos e obcecados, o fizeram ignorar muitas outras mulheres que se interessaram, genuinamente, por ele. E foi assim até chegar aos seus quarenta anos.
Mas Luciano não deixava transparecer suas angústias. Diante de todos, era agradabilíssimo e muito simpático, sempre com um sorriso leve no rosto. Procurava até mesmo ser generoso, pois isso lhe trazia muitos elogios e aumentava o seu prestígio na comunidade. Porém, quem prestasse bem atenção aos seus olhos, perceberia que havia algo de errado. Por isso Luciano não procurava perder muito tempo com conversas longas e individuais. Quando estava sozinho, sua fisionomia leve se transformava em algo atormentado, e seus pensamentos se voltavam unicamente para Leila. E foi num momento solitário, com a mente tomada por sua obsessão, que Luciano viu, pela sua janela, o brilho de Etterbelle, que caminhava ao lado do pequeno Otto.
O senhor Cambota não acreditava no que estava vendo. Para ele, a Felicidade Inesperada, a tal da “Fada da Alegria”, era apenas uma lenda quase esquecida que se contava para crianças. Apertou os olhos por duas vezes, e observava, abismado, a criatura etérea e divinal. Tomado por uma alegre ambição, pulou sua janela como um adolescente, e correu na direção do brilho, assustando tanto a Etterbelle quanto a Otto.
— Mil perdões! Mil perdões meus caros amigos! — Luciano arfava. Fazia tempo que não corria daquele jeito — Meu Deus!… Eu não acredito que é você!
Etterbelle e Otto sentiram medo de Luciano, que usava apenas um pijama de bolinhas.
— Não tenham medo, meus caros! Me desculpem por eu estar vestido assim! É que… meu Deus! É a Fada da Alegria! É exatamente do jeito que contam as histórias! Isso é fantástico! Você…você é real! — Etterbelle se incomodou profundamente com os olhos sedentos de Luciano, e, deixando Otto atrás de si, procurou se afastar.
— Olha, senhor… eu não sei o que você quer, mas não posso te oferecer nada no momento. E é bem inapropriado você estar na rua vestido desse jeito. — a voz de Etterbelle era firme e metálica. Otto então interveio, complementando:
— Moço, está realmente frio e minha amiga precisa ir para casa agora. — Luciano ignorou completamente o garoto e, voltando-se para Etterbelle, disse, com ansiedade:
— Por favor, minha dama, conceda-me felicidade! Eu a quero mais que tudo! Eu quero minha preciosa Leila!
— Senhor! Eu preciso ir embora! Pare de falar essas coisas! — respondeu Etterbelle, se afastando ainda mais do banqueiro. Porém este, avançando com voracidade, protestou:
— Mas você é a Fada da Alegria! Atenda ao meu pedido! Atenda ao meu desejo! Agora!
— As coisas não são assim, homem! Otto, volte para casa! — Após dizer aquelas palavras, Etterbelle desapareceu num piscar de olhos.
O banqueiro, revoltado e transtornado com a recusa de Etterbelle, sentiu ódio. Procurou pelo menino, mas Otto já havia se embrenhado em um beco e desaparecido na escuridão da noite. Bufando e vermelho de raiva, Luciano prometeu achar tanto o menino quanto a Etterbelle; ele iria fazer o que fosse preciso para ter seu desejo atendido.
IV
Havia na cidade uma loja de aparência estranha que Luciano conhecia bem. Tempos atrás o banqueiro alugara tal estabelecimento para um curioso homem de terno e gravata, que insistia em não revelar seu nome; gostava apenas de ser chamado de Comerciante. Ora, naquela tarde Luciano decidiu fazer uma pequena visita a ele e, ao abrir a porta, um delicado sino soou. O Comerciante estava no balcão do fundo, olhando sinistramente para a entrada, como se esperasse pela chegada de seu senhorio. O banqueiro sentiu certo calafrio ao ver aqueles olhos escuros.
— Ah! Se não é o meu precioso locador! Entre! Entre e seja bem-vindo a minha humilde loja! No que posso te ajudar? — A voz do Comerciante era grave e curiosamente confortável de se ouvir. Ele deslizou até Luciano como um fantasma.
— Eu acho que é a primeira vez que vejo como é tua loja. — Luciano pegou um recipiente vermelho ricamente ornado de detalhes dourados em uma das prateleiras, e começou a analisá-lo — Você vende… objetos interessantes.
— Interessado em gênios, meu caro? — Perguntou o Comerciante, retirando, delicadamente, o recipiente das mãos de Luciano.
— Ha ha! Gênios! Essa é uma forma de dar mais valor às tuas bugigangas?
— Se você achasse que tudo isso são bugigangas, não viria aqui, meu caro senhor. Cada objeto que vendo é especial… e creio que você está em busca de algo… especialíssimo. — A sedução na voz do Comerciante pareceu mexer profundamente com Luciano.
— Você conhece algo sobre a tal da Etterbelle?
— Etterbelle? Hmm… Ela é uma criatura bem peculiar… Mas já faz tempo que não ouço nada dela por aí. — O estranho e pálido homem abriu um sorriso tenebroso — Meu caríssimo senhorio, você espera encontrar alguma bugiganga para presenteá-la? Olha, ela pode ser bem exigente.
— Eu só quero saber se você a conhece!
— E por que acha que eu, um humilde comerciante, a conheceria? — Luciano fez menção de responder, mas se calou. O ambiente ficou mais sombrio, e os olhos do Comerciante pareceram ficar mais escuros que o normal — É… seria interessante tê-la em minhas coleções. Eu já a vi por aí, mas isso faz tempo… muito tempo, por sinal. Não a conheço pessoalmente, mas sei que é de natureza incerta… Apenas aqui vi tal criatura. Sei que ela concede felicidade para qualquer um que ela deseje. É isso que sei sobre ela. — Um silêncio mórbido caiu sobre a loja, como se o mundo não existisse do lado de fora — Meu caro senhor Cambota, sejamos francos: na superfície você quer acreditar que vendo bugigangas e outras parafernálias para uns moleques chatos. Mas você sabe, por mais que negue, que vendo coisas realmente especiais. Se não fosse assim, você não viria aqui, tão de repente para perguntar algo tão específico.
— Imaginei que pelo teor da sua loja…
— Diga o que quer, meu senhorio.
— Bem… Está bem! Já ouvi por aí que teve gente que tentou capturar Etterbelle, e que em alguns casos, quase conseguiram. Eu… eu… queria saber se você tem… meu Deus do céu, isso é loucura! O que eu estou fazendo aqui?!
— Você quer saber se eu tenho algo que ajude a capturá-la? É isso? Isso eu tenho, com toda a certeza. E esses caçadores que você mencionou eram uns inúteis. Conheço-os bem. Mas… antes de eu te mostrar o produto para capturá-la, quero saber como fará para achar essa criatura? Está muito certo de que pode encontrá-la; vejo em teus olhos.
— Apenas tenho uma forma de encontrá-la. Agora, onde está esse tal produto?
O Comerciante pareceu deslizar para um lado, sumindo em seguida. Isso deixou o banqueiro completamente assustado, e sua cabeça começou a girar; era como se a realidade se desfizesse ao seu redor. Então, em questão de segundos, a realidade se reestabeleceu e o Comerciante reapareceu carregando uma pulseira prateada.
— Mas… mas… o que aconteceu?!
— Fui buscar uma das minhas “bugigangas”. Tome, segure isto. — Luciano pegou a pulseira, que era muito leve. Percebeu que havia algumas coisas escritas nela. O Comerciante então lhe falou: — “A sua vontade é oprimida, e a materialidade é exigida”, é isso que está escrito. Se conseguir achar Etterbelle, coloque isso em um de seus pulsos, e ela não conseguirá desaparecer. Além disso, ela se sentirá obrigada a te seguir, mesmo que não queira.
Luciano ficou olhando para aquele objeto, sem acreditar muito.
— Como vou saber que isso funciona?
— Apenas coloque em um dos pulsos dela. — respondeu o Comerciante com um sorriso macabro. — Depois que ela tiver sua vontade subjugada, aconselho enjaulá-la. Só por precaução. E… sobre o pagamento… — Luciano sentiu uma pontada no peito ao ouvir isso — He he! Não se preocupe, meu caro senhorio, não vou pedir tua alma ou coisa do tipo. Quero apenas que me entregue Etterbelle depois de usá-la.
— E se eu não quiser entregá-la?
— Você se enjoará dela. Quando isso acontecer, entregue-a para mim. Eu espero o tempo que for preciso.
Luciano de repente se sentiu impelido a sair da loja. Era como se uma força oculta o expulsasse dali. O Comerciante, por sua vez, retornando para o seu macabro balcão, esboçou um sorriso enigmático enquanto seu senhorio fechava a porta.
V
Etterbelle se tornou muito amiga de Otto, e, sempre que podiam, se encontravam no alto de prédios, ou em cemitérios.
O menino gostava muito de conversar e de se abrir com Etterbelle, que sentia um imenso prazer em estar com ele. Após cada conversa, Otto voltava mais maduro e isso logo transpareceu para os adultos, que passaram a enxergá-lo como muito inteligente e responsável. Isso lhe trouxe muitos benefícios, até que foi adotado por um gentil casal de professores que vislumbrou um futuro cheio de possibilidades para o garoto. Mesmo vivendo uma vida, na medida do possível, feliz, Otto nunca deixou de se encontrar com a Felicidade Inesperada.
No entanto, quando Otto tinha seus onze anos, Luciano Cambota conseguiu reencontrá-lo. O banqueiro se lembrou do rosto do menino e foi falar com ele.
— Ei, garoto! Que bom que te achei! Não está lembrado de mim? — Apesar da simpatia, havia uma sombra de tormento no rosto de Luciano — Como demorei para te achar!
— Me… desculpe, senhor. Não posso falar com estranhos. — Otto tentou ir embora, mas Luciano agarrou o seu braço e disse, ainda mantendo seu sorriso: — Não! Não vá agora! Olha, garoto, preciso muito que chame a Fada da Alegria para mim. Ela ainda tem falado com você?
— Me solte! Ai! — Otto conseguiu se desvencilhar de Luciano, e deu um chute na canela do homem. O banqueiro, distraído com a dor, não viu para onde o menino correu.
— Moleque maldito! Ainda vou descobrir onde você mora e vou infernizar a sua vida! Etterbelle deve ser minha!
Otto foi direto para casa, chorando. Fernando e Yolanda, seus pais adotivos, ficaram assustados quando viram o estado do menino. Quando este lhes revelou o que tinha acontecido naquela tarde, o casal, revoltado, foi até à polícia para denunciar o senhor Cambota. No entanto, o delegado Aurélio não quis aceitar as acusações.
— Como assim você não pode investigar o que esse banqueiro fez?! — Esbravejou Fernando, sendo seguido por Yolanda: — Se eu colocar as mãos naquele salafrário eu…
— Calma, meus caros! Calma!… — a voz de Aurélio era irritantemente suave — Vocês têm somente o relato de uma criança. O senhor Cambota é incapaz de fazer maldade para uma mosca. Será que o filho de vocês não está só querendo atenção?
— Olha aqui seu…! — Yolanda teve que ser contida por Fernando antes que ela avançasse em Aurélio.
— Se recomponha, mulher! Se me agredir, mando os dois para a prisão! E isso vai ser ruim para o garoto!
— O senhor não fará nada, delegado? — Perguntou Fernando, tentando conter sua raiva. Aurélio simplesmente respondeu dando de ombros. Assim que o casal deixou o local, o delegado pegou o telefone e ligou para Luciano.
— Alô… Senhor Cambota? Aqui é Aurélio, delegado. Apenas para te avisar que estiveram aqui dois professores que disseram que você maltratou o filho deles… É… Hm, hm… Isso é um absurdo mesmo. Ah! O nome deles e do filho? Os pais se chamam Fernando e Yolanda… O filho se chama… como é mesmo?… Ah! Otto, alguma coisa assim…. Hm? Ah, o senhor quer saber onde eles moram? — Aurélio ficou um pouco reticente com o pedido de Luciano — Olha… eu não sei se seria ético…
— Ético seria se eu expusesse todos os podres da sua delegacia, senhor Aurélio. Se quiser manter tudo em ordem, apenas me diga onde eles moram. Ah! Se possível, me diga onde esses… professores trabalham também.
— Tudo bem, senhor Cambota… tudo bem! O senhor não é fácil mesmo! Eles moram na Rua dos Laranjais, 45. A escola que os dois trabalham é… deixa eu ver… Fica na Rua de São Albuquerque das Flores, número 2. Hm, hm. Essa ligação nunca aconteceu, tudo bem, senhor Cambota? Sim? Ok! — Depois que Aurélio desligou o telefone, Luciano sorriu malignamente.
Três dias após aquela ligação, Luciano fez questão de comprar a escola onde Fernando e Yolanda trabalhavam. Sendo o novo dono, exigiu que os dois fossem demitidos, e como muitos na cidade deviam favores ao banqueiro, os pais de Otto tiveram dificuldades para arrumar um novo emprego. Não satisfeito, Luciano fez negócio com o senhorio do casal, e comprou a casa onde moravam. Por meio de um advogado, o senhor Cambota ordenou que a família de Otto fosse despejada. Desolados, e sem ter para onde ir, Fernando e Yolanda temeram por Otto. Poderia acontecer de alguém do serviço social vir e tomar a criança, já que estavam quase em completa vulnerabilidade. E foi naquela situação de miséria que Etterbelle reencontrou Otto. Logicamente ela se entristeceu ao ver o estado de sua família. Enquanto Fernando e Yolanda dormiam num barraco improvisado, Etterbelle se aproximou de um choroso Otto.
— Foi Luciano Cambota! Foi aquele banqueiro de meia tigela! — Otto falava isso enquanto abraçava a sua amiga luminosa — Esse monstro está atrás de você, Etterbelle! Acho que é melhor a gente parar de se encontrar, senão ele vai te achar.
— Como pode um homem ser tão mau assim?… Meu Deus do céu!
— Se você, sendo bem mais velha, não sabe responder isso, imagine eu…
Enquanto conversavam, Luciano estava de tocaia com uns pilantras contratados. O banqueiro, após realizar suas maldades contra a família de Otto, sabia que, mais cedo ou mais tarde, Etterbelle apareceria. Então viu os dois abraçados e teve a impressão de ver uma mãe consolando um filho. Aquilo o encheu de ódio.
Em certo momento, Etterbelle sentiu o ambiente ficar estranho e percebeu um ou outro vulto correr para lá e para cá. Otto ficou assustado e, num movimento rápido, Luciano brotou das trevas e prendeu a pulseira no delicado pulso da criatura. Etterbelle, ao ver o que aconteceu, se afastou e tentou desaparecer, mas não conseguiu.
— Fuja daqui, Etterbelle! — gritou Otto, acordando seus pais no barraco.
— Eu não consigo fugir! Eu não consigo… voar… Ai! O que está havendo?!
Enquanto Luciano se aproximava vagarosamente da Felicidade Inesperada, os pilantras derrubaram Otto no chão e atearam fogo no barraco de seus pais.
— Não!!! Os pais de Otto, não!!! — o grito de Etterbelle foi cortante e encheu de angústia alguns malfeitores, que fugiram assustados. Porém, outros riram da situação. Então Luciano Cambota disse:
— Eles não vão morrer. Eu poderia fazer isso, mas não quero.
— Seu monstro! Ai… eu estou me sentindo fraca…
— Você agora é minha! Você agora é minha Fada da Alegria! Vamos, levante-se e me siga! — Etterbelle, não se sentindo mais senhora de si, e sem entender, obedeceu. Otto não sabia se ajudava os pais ou se ajudava sua amiga, até que Luciano lhe disse: — A polícia está vindo prender teus pais, moleque. Ninguém mandou esses dois atearem fogo na rua. Ei! Vocês dois aí! Joguem esse casal ali, naquela pilha de lixo, e deem um tapa nesse moleque!
Os dois brutamontes atenderam a ordem de Luciano, e agarraram Fernando e Yolanda como se fossem bonecos de pano. Como se debatiam muito, os capangas socaram a barriga dos dois e os largaram em cima do lixo. No entanto, quando procuraram por Otto, este tinha desaparecido. Os dois malfeitores, junto com uns outros que ainda estavam por ali, não demoraram para debandar. Otto estava escondido e esperava por um momento para ajudar seus pais, porém, antes que pudesse agir, o delegado Aurélio apareceu com dez policiais.
— É muito triste ver que vocês se revoltaram desse jeito! — Aurélio falou isso com disfarçado desdém; estava constrangido — Onde está o filho de vocês?
— Nós não fizemos nada! Nada! Vieram uns vagabundos e quase nos mataram! — esbravejou Fernando, olhando ao redor, procurando por Otto.
— Mas… foram vocês que atearam fogo aqui… e causaram essa confusão. — Aurélio tentava conter seu constrangimento.
— O que você está dizendo?! Cadê meu filho?!
— Não sei. Talvez vocês pudessem dizer… O serviço social deve vir logo.
— Seu… — Yolanda se levantou e socou fortemente o rosto de Aurélio.
— Prendam esses dois salafrários! Tirem eles daqui! — o delegado ficou vermelho de raiva e segurava o seu queixo, que doía fortemente. — Procurem o garoto! Ele deve estar por perto!
Otto, sem saber o que fazer, correu pelos becos e ruas, afastando-se daquele local. Subiu ao terraço de um pequeno prédio e se empoleirou num canto. Chorando silenciosamente, viu uma pequena coluna de fumaça preta subir ao longe. Quis ajudar seus pais e Etterbelle, mas sentiu-se impotente, e o vento frio pareceu torturá-lo ainda mais.
VI
Etterbelle estava amuada e com o brilho fraco. Encostada num canto da jaula que Luciano mandou construir, olhava para a maldita pulseira de prata. Já Luciano era só felicidade; mas sua felicidade era vil. Olhava para a Felicidade Inesperada com cobiça e desejo, e a sombra de sua maldade enchia Etterbelle de nojo.
— Agora eu terei tudo o que mereço! Tudo o que sempre mereci!
— E o que você acha que merece, senhor? — a voz de Etterbelle era monótona e pesada.
— Eu mereço ser feliz! Mereço ter o que sempre quis! Minha Leila! Minha amada Leila!
— Senhor… eu não posso fazer isso…
— Por que não?! Você não é a Fada da Alegria?! A fada realizadora de desejos?! Vamos! Faça Leila Amélia largar o traste do marido dela, e faça com que se apaixone por mim! Faça isso!
— Eu não posso forçar a vontade de ninguém… Não me peça isso!
— Mentirosa! Você dá uma família para um moleque de rua, mas não pode me dar a mulher da minha vida?!
— Eu não dei família alguma a ele. Otto foi adotado por boa gente… Gente que você fez questão de maltratar.
— Você está começando a me parecer inútil. Mas… é bonita e ficará aí, nesse teu canto. Quem sabe você se arrependa de tua tolice e venha a atender ao meu desejo? — Luciano então saiu do quarto, fechando a porta com força, e Etterbelle ficou numa escuridão profunda.
Aquele foi um período ruim, e os dias eram longos e demorados. A cada semana Etterbelle definhava mais e mais, e seu brilho era cada vez mais moribundo. Foi assim por dois anos, até que o senhor Cambota finalmente se enjoou dela.
— Pois é, querida fada — Luciano se jogou pesadamente na poltrona que ficava à frente da jaula — Acho que você é uma farsa. Bem, tenho um conhecido que diz que não… e ele tem interesse em você.
— Você fala do homem que te deu esta pulseira? — a voz de Etterbelle saiu aspirada e seca.
— Amigo seu? Bem… Acho que ele fará melhor uso de você.
— O que eu não entendo, senhor Cambota, é como você não consegue se sentir satisfeito com nada. Você… você tem tudo; literalmente tudo! Casa, comida e uma cama confortável para dormir. Quando eu era livre e voava por aí, eu via o senhor rejeitar tantas pretendentes… Mas você ainda é fissurado na Leila Amélia. Ela seguiu com a sua vida e você ficou parado no tempo. Você não vive de verdade e chora por aquilo que não aconteceu; se entristece por aquilo que não tem e nem terá. E, mesmo que tivesse, você se sentiria vazio e sem propósito. — Etterbelle olhou firme para Luciano — Meu Deus… o teu vazio é horrendo! Então uma coisa eu te dou: veja-se!
A fisionomia de Etterbelle se alterou profundamente e uma sensação de terror tomou a sala, fazendo com que Luciano se apavorasse. Perturbado e sentindo péssimo agouro, o banqueiro fugiu do quarto e se trancou no banheiro. Ao se olhar no espelho, passou a mão no rosto e, pela primera vez, reparou em seu próprio reflexo. Vendo o seu vazio e suas atrocidades, percebendo quem realmente era, sentiu vergonha, nojo e remorso.
VII
Etterbelle, quase apagada, ainda não havia perdido a esperança. Era de sua natureza acreditar que seria livre novamente, quer morrendo, quer vivendo. Foi então que, inusitadamente, Otto entrou pela janela. A Felicidade Inesperada, não crendo em seus próprios olhos, demorou para entender que aquilo não era uma alucinação.
— Otto?! É você mesmo?! Você está maior! — Etterbelle brilhou fracamente.
— Meu Deus! Etterbelle! O que fizeram com você?! O que aquele crápula fez?! Você está mal…
— Não se preocupe comigo… Te ver já me deixa feliz.
— Vou soltar você daí!
— Não faça muito barulho… O senhor Cambota pode retornar a qualquer momento… Me diga, como tem vivido? Teus pais estão bem?
— Sim, estão. Dei um jeito de denunciar o Aurélio… e dei uma baita dor de cabeça na delegacia. Aí eles se viram obrigados a libertar meus pais… Poxa! Fechadura difícil essa!… Mas com Aurélio preso por má conduta, o juiz entendeu que meus pais são inocentes. Até que estamos vivendo bem… não é a mesma coisa de antes, mas estamos bem; consegui!
— Vocês ainda estão na cidade? — Etterbelle ofereceu o braço com a pulseira para Otto — E por que você não está com teus pais, menino?
— Ainda estamos na cidade. E… eu não podia te deixar para trás. Meus pais sabem que você é minha amiga e que me preocupo com você.
— Mas o senhor Cambota pode ser vingativo. Ele é muito perigoso.
— Depois da bagunça que fiz na delegacia, posso dizer que atraí a atenção de alguns juízes para nossa cidade. Acho que o senhor Cambota vai ter alguns probleminhas se ele não se ajeitar. Que pulseira esquisita! — Otto tentava entender o que estava escrito — É isso que está te prendendo? Como se abre isso?
— Sim. É um tipo de magia que não conheço… E não entendo o que está escrito.
— “A sua vontade é oprimida, e a materialidade é exigida”. — Respondeu Luciano sombriamente enquanto entrava no quarto. Otto se colocou a frente de Etterbelle e sacou uma faca. O banqueiro sorriu tristemente — Quem me disse isso foi o Comerciante… Homem esquisito… Garoto, pode guardar a faca. Ninguém aqui vai lutar ou se machucar. Se bem que eu poderia te machucar… Invadir propriedade alheia é crime. Mas… mas você tem suas razões… — Etterbelle e Otto olharam assustados para o banqueiro, que se jogou na poltrona — Garoto, essa pulseira não é difícil de abrir; não para nós. Apenas faça força para abri-la.
Otto fez conforme Luciano disse, e logo Etterbelle se viu livre. Ela brilhou como uma estrela, e a sua luz inundou todo o quarto. Luciano, de cabeça baixa, começou a chorar silenciosamente. A Felicidade Inesperada, aproximando-se, tocou-lhe um dos ombros:
— É hora de deixar a tua feiura para trás, Luciano. Agora que você se vê, é hora de se arrepender de tua maldade.
— Mas e… e se eu não conseguir mudar? — a voz chorosa do banqueiro cortou o coração de Otto.
— Mudanças são lentas… geralmente lentas. Às vezes são difíceis… Mas isso sempre vai depender de você. — Etterbelle sorriu docemente para Luciano, deixando-o atônito.
— Por que sorri para mim? Eu te fiz mal!
— Não vou guardar nada contra você. Eu te perdoo. Não há porquê guardarmos mágoas que só nos levam à destruição mútua. O mundo já está ruim demais para mais mágoas e rancores. Para mim, nosso assunto está encerrado. Otto, vamos? Vou te dar uma carona até a casa dos teus pais! Vai ser a primeira vez que você vai voar comigo!
De repente, num piscar de olhos, Etterbelle e Otto desapareceram. Luciano ficou sem palavras e guardou, no fundo de seu coração, aquelas poucas palavras que a Felicidade Inesperada lhe deu. Ao que parece, a semente da bondade começava a espalhar suas raízes no interior do banqueiro, e, timidamente uma disposição para viver de verdade começou a crescer.
Otto, por sua vez, frustrou-se quando a carona terminou. No entanto, estava muito alegre por ver sua amiga livre novamente.
— Está entregue, pequeno Otto! Você é um rapaz muito doce!
— Eu amo ver você assim! Livre e brilhante! — Otto deu um forte abraço em Etterbelle — Será que o senhor Cambota vai mudar? É muito difícil fazer o que você fez… Acho que ainda estou chateado com ele.
— Isso é natural, Otto. Mas… com o tempo você irá perdoá-lo de uma vez. — Etterbelle olhou para o céu estrelado — Esse mundo ainda é perigoso para mim… Pode ser que Luciano mude, mas há aqueles que nunca irão querer mudar. E tem gente realmente perigosa… Otto, preciso ir embora…
— Eu imagino que sim… Já esperava por isso… Bem… É melhor você ir…
Ambos se abraçaram novamente e Etterbelle começou a voar, deixando um Otto emocionado na porta de sua casa. De repente ela desapareceu, deixando uma nuvem dourada no ar. Otto então, timidamente, bateu na porta. Fernando e Yolanda abriram e abraçaram o seu filho. Reunidos, foram jantar e houve felicidade naquela casa por muitos e muitos anos.