I
Fernando José Palhares era um renomado professor de uma grande Universidade. Pesquisador nato, desde os seus vinte e cinco anos publicou, sem parar, nas mais importantes revistas científicas do mundo. Não havia outro igual ao senhor Palhares, que não fazia questão de dar bom dia para quem não fosse de sua estirpe. Para falar com ele, você deveria ser, no mínimo, professor titular de renomada instituição de ensino superior, com mais de vinte artigos publicados, além de ter escrito três livros com uma boa tiragem de vendas. Fernando José Palhares era O Cara, e ele sabia disso.
Porém, todo Cara com “C” maiúsculo sempre esbarrará na burocracia de seus locais de trabalho. Certa vez, o senhor Palhares queria viajar para a Europa, especificamente, para a Espanha, onde ocorreria uma conferência internacional que, para o professor, era importantíssima, pois haveria risos, tapinhas nas costas e dispendiosos coffe breaks. Além disso, o senhor Palhares comporia o significativo papel de ouvinte. Ora, o professor sabia que deveria ir até ao setor administrativo da Universidade para solicitar afastamento por motivo de viagem, mas achava aquela burocracia uma verdadeira perda de tempo. Além disso, Palhares debochou de um técnico, na hora do almoço, quando soube que “aquele simples servidor” conseguiu uma licença para viajar.
— Ha ha ha! Veja só, Moreira, aquele técnico. Está todo feliz porque conseguiu uma licença pra viajar pra Europa. — Palhares comentava o caso, com patente desprezo, gesticulando as duas mãos e rindo. Álvaro Soares Moreira, amigo de longa data de Palhares, também ria com vontade:
— Ai ai, Palhares! Você é um piadista! Mas fale mais baixo. Acho que ele tá olhando pra gente.
— Que olhe! Não tenho nada com esse tipo de gente. Se ele quiser espernear aqui, pode espernear a vontade.
— Você é fora do gibi, Palhares! — Moreira tossiu enquanto ria. Após se acalmar, perguntou: — Então, Palhares, essa conferência é boa mesmo?
— Se é boa? É importantíssima. É uma ótima oportunidade pra fazer networking.
— Ih! Palhares… não olha agora, mas o garoto da viagem tá vindo aí.
Bernardo Brucedickson dos Santos Vieira olhava sério para os dois professores. Assim que chegou, disse:
— Olá, senhores. Não sei se estou sendo motivo de piada para vocês, mas só quero dizer que irei apresentar minha tese de doutorado na Conferência Internacional de História Social, lá na cidade de Madrid. O próprio Javier Leon de Alhambra me convidou para palestrar. Seria um prazer ver vocês por lá. Agora, me deem licença. — Bernardo foi em direção ao caixa, junto com seus amigos, de cabeça erguida e bem seguro de si. Palhares o observava com soberba e indiferença.
— Javier Leon de Alhambra! Isso é verdade? O próprio Javier? — Moreira falava histericamente. — Você não vai falar nada, Palhares? Será que esse moleque não está inventando?
— Humpf! Ele é só um moleque, como você disse. Só um moleque. Deixa ele ser feliz. Acha que tá abafando só porque o Javier o chamou. Mal sabe ele que já tomei whisky com Javier, na Escócia.
— Você vai ver a palestra dele, não vai?
— É… pode ser… Bem, vou comprar minhas passagens. Afinal de contas, se deixar pra cima da hora, tudo fica mais caro.
Fernando José Palhares comprou suas passagens e, como era de se esperar, não solicitou seu afastamento no setor de pessoal. Foi feliz e satisfeito para o avião.
II
A vida é feita de imprevistos e de surpresas. Ninguém pode dizer, com toda certeza, o que vai acontecer daqui a pouco ou daqui a dois ou três anos. Tudo acontece de repente, e ninguém esperava que o avião do senhor Palhares fosse cair no meio do Atlântico. Foi um acidente horrível e muito trágico, onde todas as cento e oitenta pessoas do avião encontraram o seu destino. Exceto Palhares.
O professor Palhares não acreditava no pós-vida, no entanto, sua morte o obrigou a mudar de perspectiva. O lugar era completamente escuro e seu corpo brilhava fantasmagoricamente. Olhou para todos os lados, tentando se situar, até perceber uma fila próxima: eram os passageiros do voo que caiu. Ao se aproximar, reconheceu Bernardo Brucedickson dos Santos Vieira.
— Ah! Você também estava no meu voo?! — Bernardo sentiu a surpresa de Palhares no próprio ectoplasma.
— Sim. Estava. Cheguei a te cumprimentar, mas, pra variar, me ignorou. — A voz de Bernardo era monótona e metálica.
— Ah… Bem… Então é assim que é o pós-vida? Bem diferente do que o povo pensa, hein! — De repente, surgiu uma voz forte, que dizia:
— Ok! Ok! Fiquem todos calmos que isso logo, logo acaba, tudo bem?! Apenas para informar que vocês todos morreram, como bem puderam perceber, na queda do avião. Antes que perguntem: não, não tem como a gente saber se vão encontrar seus corpos, ou os destroços do avião. E não, não tem como vocês voltarem pra falar com ninguém. O que passou, passou. Tudo bem?! Agora, vou chamar nome por nome, e venham se apresentar na minha mesa. — O homem de túnica branca se sentou atrás da mesa e colocou uns óculos. Abriu o que parecia ser um laptop e começou a chamar os nomes das vítimas do acidente.
A cada nome chamado, havia uma sentença. Uns subiam enquanto outros desciam. O homem, que parecia ser um anjo, dizia para quem descia: “Desculpe, mas não fui eu que vivi essa vida. Você deveria saber o que estava fazendo. E o pior, é que nem dá para reclamar com o SAC agora”. E foi assim, até sobrar o Palhares.
O anjo olhou o professor solitário no meio do nada e conferiu e reconferiu suas listas no laptop.
— Senhor, como é o teu nome mesmo?
— Fernando José Palhares, filho de dona Jaciara Ferreira Palhares e Eduardo Manoel Palhares.
— Hum… Estranho… Teu nome não está em nenhuma lista. Por que você está aqui então? — O anjo repassava os olhos nas listas pela vigésima vez.
— Bem… eu estava no voo em que todos morreram e…
— Sim, eu sei… a pergunta foi retórica.
Palhares fez menção de falar alguma coisa, mas logo percebeu que não havia nada para se falar. O anjo realmente estava concentrado. Então, travando os olhos no professor, começou a inquiri-lo:
— Qual era o motivo da viagem do senhor?
— Estava indo para uma conferência em Madrid.
— Hm… Ok… Para qual conferência? A de otakus, a de Jornada nas Estrelas, ou a de História Social? Ah, tem também a de produtores de uva. Para qual delas você estava indo?
— Isso é mesmo necessário? Não está aí no seu computador?
— Por favor, responda a pergunta, senhor. As coisas não funcionam da maneira que você quer.
— A de História Social…
— Hm… Apenas para confirmar uma coisa aqui para mim, mas onde você trabalhava?
— Sou professor universitário na Universidade Gonçalves Gouveia.
— Ah! Pode ser que seja isso então… — o anjo se aproximou bem da tela e disse: — Estranho… Você não tem pedido de afastamento para viajar. Isso confere?
— E precisava pedir? Achei que não fosse obrigatório esse tipo de coisa. — Assim que ouviu isso o anjo juntou as mãos e deu um longo suspiro:
— Você, então, não solicitou afastamento por motivo de viagem? Para a Universidade você não está viajando. Meu Deus…
— Mas era realmente obrigatório pedir isso? Que coisa chata, hein! Tanta burocracia pra nada.
— É… mas é essa burocracia que te daria segurança pras coisa! Vê se pode! Agora vai dar um trabalho…
— Que trabalho?
— Mais burocracia, senhor Palhares… mais burocracia! Sem a solicitação de afastamento por motivo de viagem, a Universidade, e o seu mundo, entendem que você ainda está lá, trabalhando como sempre deveria estar. Pela falta desse documento, meu caro, nós entendemos que você ainda está vivo. Juridicamente você está vivo, e não morto. Você entende o problemão que você me trouxe. Não dá nem pra você subir, muito menos para descer.
— Ah, então eu posso voltar a viver. — Palhares sentiu uma ponta de esperança.
— Não, porque você morreu. — Palhares murchou na hora — Entenda, senhor Palhares: você morreu, não tem mais como voltar. Acabou. O problema, é que não temos como te enviar para lugar nenhum, tudo porque você não solicitou o afastamento de sua Universidade. Você está preso no limbo e agora vou ter que ver o que posso fazer.
— Isso já aconteceu outras vezes?
— Comigo, nunca. Já ouvi uns casos de outros colegas. Vou consultá-los. Espere um pouco, sim?
O anjo saiu e ficou fora, não se sabe por quanto tempo; e tempo parecia ser uma coisa que Palhares agora tinha de sobra. Então, naquele ínterim, ficou remoendo o fato de não ter pedido o tal do afastamento, até que o anjo retornou.
— Olha, senhor Palhares… Você vai ter que preencher uns formulários aqui… ok?
— Mais burocracia? Até aqui?!
— No formulário azul você deve justificar o por quê de não ter solicitado o afastamento da Universidade. No rosa, você deve colocar teus dados pessoais. No verde, deve relatar, suscintamente, tua vida pessoal. No roxo, tua vida acadêmica. No amarelo… — O anjo prosseguiu explicando e entregando cada formulário para Palhares preencher. O professor torcia para que aquilo tudo fosse apenas um pesadelo, mas o anjo o advertiu: — Palhares, leve a sério esses formulários. Se preencher de qualquer maneira, você pode acabar descendo… ou pior: vai ter que ficar aqui e recomeçar os preenchimentos… E ninguém quer que isso aconteça, não é?
Não se sabe por quantas Eras Palhares preencheu aqueles formulários. Seu pequeno erro burocrático lhe trouxe uma grande dor de cabeça no pós-vida. Porém, a cada formulário pronto, o professor se sentia liberto, até que, por fim, ao entregar o último formulário para o anjo, Palhares sentiu que a coisa iria finalmente andar para frente.
— Ah! Que ótimo! Hm, hm. Hm, hm! Tudo preenchido. Que bom, senhor Palhares. Agora, vou pedir para você aguardar um instante. Meus superiores irão analisar teus formulários e logo, logo te trarei a resposta.
— Espera! Quanto tempo isso vai demorar?
— O tempo que for preciso. E são muitos superiores para analisar esses formulários. Eles terão que dar confirmação em cada um deles.
— Isso é sério?!
— Se você não fosse tão negligente, não estaria dando esse trabalho todo para nós, e você se pouparia desse transtorno todo. — O anjo desapareceu num piscar de olhos, e Palhares teve que aguardar por mais outras tantas Eras, até o anjo reaparecer.
— E aí? Posso subir? Ou… descer?
— Bem…
— Ih… lá vem… O que eu tenho que preencher agora? É o formulário A1, versão dourada? Ou o F5, cor azul?
— Bem… Esperamos que você assine alguns termos de responsabilidade, já que o processo todo… demorou muito tempo e estamos já no Juízo Final.
— Mas o que?!
— Pois é… Assine os termos, por favor. E leve a sério isso, sim.
— E depois?
— Depois a gente vê…
— Mas que termos são esses? — Palhares estava ficando desesperado ao ler os documentos.
— Termos de responsabilidade, caro Palhares. Juízo Final, sabe? Não tem mais Terra e países ou Universidades para recuperarmos documentos. E como você está nesse limbo… jurídico, você deve ler e assinar cada termo para ir se encontrar com o Criador. Ele que vai dar a palavra final. Então leve a sério, tudo bem?
— Ai… meu Deus… que que eu faço?
— Ele vai te responder assim que você assinar esses termos. Mas leia antes.
Palhares assinou os inúmeros termos de responsabilidade e seguiu o anjo. O que aconteceu depois é um imenso mistério, mas, certamente, o professor Palhares nunca mais teve problemas com burocracia.