2 – Ignorância, cacofonias e percepções: reflexão e crítica em um mundo desinformacional

I

Introdução

A desinformação é coisa antiga, além de ser inerente às sociedades humanas. Poseti e Matthews (2018) demonstraram isso em uma linha do tempo que remonta até ao ano de 44 a.C., onde elas apresentam a desordem informacional através dos séculos. Mas o que difere o hoje do ontem, é a capacidade de propagação e alcance da desinformação, graças ao desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação. Porém, apesar de todas as mudanças que nosso mundo passou, passa e passará, o propósito da desinformação parece continuar o mesmo: enganar (Brisola & Bezerra, 2018; Entidade Reguladora para Comunicação Social, 2019; Froehlich, 2020; Wardle & Derakhshan, 2017; Mello, 2022).

A intenção do ardil é o que diferencia a desinformação da simples informação errada ou falsa. Wardle e Derakhshan (2017) dizem que a desinformação é uma criação deliberada de informação falsa, visando causar prejuízo a terceiros, e Brisola (2021) afirma que a desinformação é “um complexo de ações que constroem um cenário intencionalmente determinado”. Ora, se a desinformação engana e manipula, além de ser construída de forma consciente e proposital, podemos nos arriscar a chamá-la de mentira. Santo Agostinho (2019) escreve que “ninguém pode duvidar de que mente aquele que deliberadamente diz uma coisa falsa com intenção de enganar. Portanto, dizer uma coisa falsa com intenção de enganar é uma mentira declarada”.

Mas será que a desinformação tem apenas o propósito do prejuízo a terceiros? Apesar do engano planejado causar, de fato, danos a pessoas e a grupos, o embuste também pode ser utilizado, conscientemente, para preservar, ou promover, a imagem de alguém ou de alguma ideia. Fonseca (2005), ao falar sobre as formas de engodo que outros animais utilizam para sobreviver, afirma que

o repertório ilusionista gravita ao redor de dois estratagemas básicos. Há o engano por ocultamento, que se baseia em ardis de camuflagem, mimetismo e dissimulação; e há o engano por desinformação ativa, baseado em práticas como blefe, o logro e a manipulação.

Enquanto o engano por ocultamento procura induzir o outro a não perceber o que existe, a chamada desinformação ativa leva o sujeito a ver o que não existe (Fonseca, 2005). A partir deste ponto, ousa-se dizer que a falsidade construída pode ter outros objetivos além do prejuízo a terceiros. Então, compreende-se — e se reafirma — o que já foi colocado anteriormente: o objetivo da desinformação, ao que parece, é, unicamente, o engano, quer isso cause problemas ou vantagens a outrem.

Entretanto, nem toda informação falsa, ou errada, é compartilhada com a intenção do engano. Podemos chamar esse tipo de informação de misinformation (Wardle & Derakhshan, 2017), e aqui cabe um adendo para justificar o uso do termo em inglês. Apesar de misinformation significar, grosseiramente falando, “informação errada”, ou, ainda, “informação equivocada”, suas origens podem ir, presume-se, muito além de simples mal-entendidos. Crenças obscuras, preconceitos, falhas de memórias, dentre outros fatores ligados a percepção, além da própria desinformação em si, podem gerar misinformations. Pelo fato do termo inglês, aparentemente, abranger esse compêndio de fatores, prefere-se o uso do termo nessa língua.

Ressalta-se que a desinformação possui intenção do engano; misinformation não possui intenção do engano.

Dito isto, continuemos.

Como colocado um pouco acima, a origem das misinformations pode ser abrangente, difusa e nebulosa. Isso pode acabar ajudando na concepção de novas desinformações, que levará a um ciclo sem fim de enganos e autoenganos. Deve-se ter em mente que a desinformação afeta nossos sistemas de crenças, influenciando nossas percepções sobre a realidade circundante, tornando-nos em disseminadores passivos de mentiras bem construídas, e transformando-nos em vetores de misinformations, principalmente quando a desinformação se harmoniza com nossas crenças, se camuflando em nosso entendimento.

II

A Ignorância da ignorância

Barros (2020) nos diz que “o mundo não é exatamente do jeito que queremos”, e Pilati (2021), complementa isso ao afirmar que “a realidade do universo é indiferente ao observador, à nossa humanidade e, em última análise, à nossa existência”. Tudo que percebemos ao nosso redor está permanentemente “obscurecido por trás de um véu sensorial” (Seth, 2019), e nosso entendimento sobre as coisas certamente não será “puro” ou imparcial. Mesmo o método científico, que nos lança alguma luz sobre a compreensão da Natureza, e que levanta hipóteses sobre as relações sociais do ser humano com seu semelhante, está submisso aos vieses cognitivos, às crenças e visões de mundo daqueles que praticam ciência. Se o cientista não tomou as devidas precauções a respeito de suas percepções e entendimentos, compreendendo que pode ser influenciado por aquilo que ele espera e por aquilo que ele quer ver (Plous, 1993), pode interpretar seus achados de forma questionável. Por isso se crê que uma espécie de ceticismo crítico seja essencial às mentes dos sujeitos; um ceticismo que nos leve ao reconhecimento de que nossos vieses e crenças podem, sim, atrapalhar e interferir nas análises e interpretações do mundo. Segundo Pilati (2021): “ser cético sobre seus próprios sistemas de crença é uma tarefa paradoxal, pois aceitar a falibilidade do próprio conhecimento pode trazer instabilidade em suas asserções e significados”. Ser cético e observar o denso desconhecido que se avoluma ao nosso redor pode ser, além de desconfortável, assustador.

Lovecraft [2014], no início de seu conto “O Chamado de Cthulhu”, aparenta descrever esse horror apavorante que provém da possibilidade perturbadora de saber que aquilo que pensamos conhecer pode não condizer com a realidade. O autor escreve:

Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe. As ciências, cada uma empenhando-se em seus próprios desígnios, até agora nos prejudicaram pouco; mas um dia a compreensão ampla de todo esse conhecimento dissociado revelará terríveis panoramas da realidade e do pavoroso lugar que nela ocupamos, de modo que ou enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos dessa luz fatal em direção à paz e ao sossego de uma nova idade das trevas.

Certamente a plácida ilha de ignorância é um lugar confortável de se estar, pois ali o indivíduo pode lidar com aquilo que ele pensa conhecer, ignorando as infinitas contradições que rondam seus preconceitos e crenças. Tornar-se consciente da própria ignorância pode ser aterrador para a maioria de nós, pois isso reflete a nossa vulnerabilidade ante a incerteza, ante ao desconhecido. Carl Sagan (2006) diz que “como um terremoto que confunde a nossa confiança no próprio solo que estamos pisando, pode ser profundamente perturbador desafiar as nossas crenças habituais, fazer estremecer as doutrinas em que aprendemos a confiar”. Ora, ainda em Carl Sagan (2006), é dito que “durante grande parte de nossa história tínhamos tanto medo do mundo exterior, com seus perigos imprevisíveis, que aceitávamos de bom grado qualquer coisa que prometesse suavizar ou atenuar o terror por meio de explicações”.

Torna-se compreensível que em um mundo com uma grande cacofonia de informações de todo o tipo, seja ela boa, ruim, falsa ou verdadeira, o sujeito se sinta perdido, ou desconfortável, com a amplitude das mudanças e com a quantidade de informações recebidas. Segundo Hogg (2019) “as pessoas precisam possuir um senso firme de sua identidade e de seu lugar no mundo”. Se o indivíduo não sabe lidar bem com o terror da imprevisibilidade e do desconhecido, ele pode sentir o seu senso de Eu prejudicado. E, sentindo-se indefeso, o sujeito pode se lançar na busca por informações que confirmem suas crenças e visões de mundo, além de procurar por líderes autoritários, que influirão, quer de forma premeditada ou não, elementos neuróticos que prenderão a pessoa amedrontada pelo incógnito em uma ilusão angustiante e destrutiva (Hogg, 2019; Neumann, 2017).

É natural que mudanças tragam medos e receios, pois aquilo que antes era, já não é mais. Mudam-se conceitos, preceitos e pensamentos. No entanto, a permanência no medo e a recusa de entendê-lo para confrontar visões de mundo, assim como preconceitos entranhados no íntimo do sujeito, não aparenta ser saudável. King Jr. (2020) afirma que

o homem permissivo sempre teme a mudança. Sente segurança no status quo e tem um medo quase mórbido do novo. Para ele, a maior dor é a dor de uma nova ideia […]. A pessoa permissiva sempre quer cristalizar o momento e manter a vida sob o jugo restritivo da mesmice.

Permanecer no jugo restritivo da mesmice talvez seja comparável com o ato de fugir para a paz e sossego de uma nova idade das trevas, a qual Lovecraft comenta no início de seu conto. E nessa idade das trevas, pode ser que os amedrontados pelas mudanças decidam ignorar a sua ignorância, e passem a buscar formas de proteger suas crenças perante novas descobertas, perante àquilo que é novo. Guzzo e Lima (2018) escrevem que a psicologia cognitiva sugere “que as pessoas não são, naturalmente, boas avaliadoras de razões, especialmente quando refletem sobre ideias que lhes são caras”. E Pilati (2021) complementa isso ao afirmar que acreditar no que se quer é válido para todos, e que todos são afetados, “direta ou indiretamente, por algum sistema de crenças infalível”.

A falta de autocrítica, aliada ao temor daquilo que é diferente e/ou novo, pode vir a se tornar uma combinação perigosa, principalmente se isso parte de pessoas sinceras e autênticas em suas crenças. King Jr. (2020) ilustra isso ao dizer que “alguns dos mais vigorosos defensores da segregação [nos EUA] são sinceros em suas convicções e zelosos em seus motivos”. O reverendo ainda acrescenta que “nada no mundo é mais perigoso que a ignorância sincera e a estupidez conscienciosa”. Ora, “a tolice é um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade” (Bonhoeffer, 2003).

Para Bonhoeffer (2003) a tolice não é um defeito intelectual, mas sim um defeito humano. Ele pontua que há pessoas intelectualmente ágeis, mas que são tolas, e outras, as quais chama de intelectualmente lentas, mas que não são tolas. Bonhoeffer (2003) escreve:

Ela [a tolice] é uma forma particular de influência das circunstâncias históricas sobre a pessoa, um sintoma psicológico de determinadas situações externas. Examinando melhor a questão, mostra-se que qualquer demonstração exterior mais forte de poder, seja ele político ou religioso, castiga boa parte das pessoas tornando-as tolas. E até se tem a impressão de que se trata aí de alguma espécie de lei sociológico-psicológica. O poder de uns precisa da tolice dos outros. No entanto, o que acontece não é que determinadas capacidades – como, por exemplo, as intelectuais – de repente se atrofiem ou desapareçam na pessoa, mas que, sob a impressão avassaladora causada pela demonstração de poder, a pessoa é privada de sua autonomia interior e então desiste – mais ou menos inconscientemente – de encontrar uma postura própria diante das condições de vida com que se depara. O fato de que o tolo muitas vezes se mostra obstinado não deve nos levar a concluir que seja independente. Na conversa com ele chega-se a sentir que não é com ele mesmo que se está tratando, mas com chavões e palavras de ordem que tomaram conta dele. Ele está fascinado, obcecado, foi maltratado e abusado em seu próprio ser. Tendo-se tornado, assim, um instrumento sem vontade própria, o tolo também é capaz de qualquer maldade e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecê-la como tal. Aqui reside o perigo de um abuso diabólico, por meio do qual pessoas poderão ser destruídas para sempre.

O sujeito, alienado da consciência de sua própria ignorância, nunca encorajado a questionar suas crenças e preconceitos; nunca estimulado a refletir sobre suas percepções e sobre o fato de que o mundo nunca será conforme ele deseja, torna-se presa fácil para si mesmo — para seus próprios autoenganos — e para desinformações que partem, ou de grupos interessados em explorar o pavor alheio, ou de pessoas que simplesmente desejam manter as coisas como estão.

É nesta complexidade de relações e pensamentos humanos, de crenças e preconceitos ocultos nos véus de nossas mais íntimas ilusões, que as misinformations surgem, não com o intento do engano, mas com o pretenso intuito de informar. Ora, Wardle (2018) afirma que “indivíduos que não sabem que uma informação é falsa, podem compartilhá-la nas mídias sociais na tentativa de serem úteis”. E, como dito na introdução, tais informações falsas podem não vir apenas de desinformações, mas podem ter origens em crendices populares, visões de mundo questionáveis, e assim por diante. Porém, tais coisas podem municiar aqueles que constroem desinformações, principalmente em um mundo governado por algoritmos que insistem em prender os sujeitos em suas próprias bolhas. Daí volta-se a necessidade de um ceticismo crítico e da competência crítica em informação.

III

Ceticismo e Competência Crítica em Informação

É provável que a desinformação, assim como nossa tendência em ter crenças infalíveis, não terá uma solução definitiva. Para a natureza humana não há uma receita de bolo, com medidas exatas e acertadas. No entanto, isso não significa dizer que não existam caminhos a serem seguidos e instigados. A personagem Eleanor Arroway, no romance Contato (Sagan, 2008), diz que “a maneira que se tem para evitar os erros, ou pelo menos reduzir as possibilidades de se cometerem erros, consiste em ser cético”. Indo na mesma direção, Pilati (2021) afirma que o ceticismo “é um exercício possível e importante, pois é o meio de criar novas formas, mais eficientes, de compreender a si mesmo e o mundo a sua volta”. E Merton (2013) dá a entender que o ceticismo organizado gera uma suspensão do julgamento, levando a uma espécie de “escrutínio imparcial de crenças”, que, geralmente, segundo o autor, deságua em conflitos com instituições políticas, religiosas e econômicas.

Porém, por mais que se entenda que o ceticismo seja, talvez, um caminho desejável para evitar erros e autoenganos, permitindo chegar ao ambicionável patamar da redução de preconceitos (Pilati, 2021), deve-se ter em mente que o ceticismo está submisso aos nossos vieses cognitivos, podendo sofrer constantes interferências de nossas crenças mais estimadas. Dito isto, observando a clara dificuldade de pôr crenças à prova, podemos ser levados a refletir sobre a honestidade, a prudência e a humildade intelectuais, fatores os quais são capazes de trazer um amadurecimento de senso crítico para o indivíduo.

Analisando mais de perto esses três fatores, podemos nos aventurar em discorrer brevemente sobre alguns de seus detalhes, começando pela honestidade intelectual. Ser honesto intelectual, presume-se, é reconhecer a possibilidade de pensamento enviesado. É a consciência do próprio sujeito admitindo que suas reflexões podem sofrer influência de sua cultura, preconceitos e crenças (Gasque, 2012). O indivíduo, ciente de seus vieses, pode passar a ser cuidadoso com suas reflexões, tornando-se intelectualmente prudente.

Sobre a prudência, Baltasar Gracián (2003) afirma que grandes inteligências “só chegam a uma decisão depois de muito pensar, porque é mais fácil evitar o perigo do que se sair bem dele”. Já Capurro (2010) escreve que a prudência é “o horizonte de alguém que é consciente de seus limites. Ela delimita o anti-critério ‘tudo é permitido’ nos fazendo conscientes de situações ambíguas e evita que busquemos soluções simplistas”. Pode ser que a prudência intelectual nada mais seja do que o cuidado que a pessoa tem com aquilo que ela entende e interpreta. Visto deste modo, parece que a honestidade e a prudência intelectuais andam de mãos dadas, pois, enquanto uma reconhece que suas conclusões podem estar enviesadas, a outra procura tratar tais reflexões com cuidado, com o objetivo de não dar margens a interpretações controversas.

Por fim, temos a humildade intelectual, que pode ser entendida como a consciência de que nunca haverá um conhecimento completo e fechado sobre determinado assunto. É o reconhecimento que o sujeito tem de que quanto mais se conhece, mais consciente de sua própria ignorância ele se torna. Sempre haverá algum novo conhecimento a ser descoberto que simplesmente poderá transformar os paradigmas já bem estabelecidos pelas ciências.

Presume-se que estes três fatores, honestidade, prudência e humildade intelectuais, devam fazer parte do pensamento cético. Por sua vez, o ceticismo deve estar presente no senso crítico dos sujeitos. Porém, por mais que a reflexão seja algo que ocorra naturalmente nas mentes humanas, o pensamento crítico-reflexivo, ao que parece, não é, imediatamente, instintivo. Para criaturas que já nascem preparadas para perceberem o mundo ao redor, reconhecendo padrões e evitando perdas e perigos, além de tornarem tarefas complexas em automáticas por meio de práticas prolongadas (Kahneman, 2012), é trabalhoso, de um ponto de vista cognitivo, suspender o pensamento corriqueiramente intuitivo e cotidiano, para se debruçar, reflexivamente, sobre algum tema. Ora, o pensamento crítico, para Elder e Paul (1996) é “a habilidade e disposição de melhorar o pensamento sistematicamente sujeitando-o à autoavaliação intelectual”. Já Bezerra, Schneider e Brisola (2017) irão escrever que o senso crítico implica em um “fator cognitivo que orienta nossa atenção e seleção informacionais, com base no conhecimento acurado de nossas próprias demandas, em meio ao infinito informacional não administrável”. Por não ser algo naturalmente instintivo, além de ser uma atividade cognitiva que requer trabalho e prática, crê-se que o pensamento crítico-reflexivo deva ser incentivado, continuamente, entre os sujeitos, ainda mais dentro da presente realidade de mundo desinformacional em que vivemos. E é neste mundo que a competência crítica em informação surge como disposição a ser estimulada.

Pode-se dizer que a competência crítica em informação é uma capacidade sociocognitiva orientadora de nossas demandas informacionais (Schneider, 2019), que leva em conta a reflexão e a crítica sobre o que se busca de informação, ou sobre as informações que param diariamente diante de nós. Schneider (2019) afirma que tal habilidade requer a suspensão da cotidianidade, onde o sujeito irá se esforçar para se concentrar “em um único problema ou conjunto de problemas, junto à abstração da espontaneidade, do imediatismo, dos juízos provisórios, das generalizações, da mimese, dos preconceitos”. Percebe-se que para tal coisa é preciso prática, de modo que o exercício da competência crítica em informação ganhe, quem sabe, contornos instintivos em nossas mentes. Ora, de muito praticar e treinar uma atividade, principalmente uma que seja laboriosa e complexa, pode ser que ela se torne espontânea na vida do sujeito. No entanto, tal espontaneidade adquirida com grande esforço, não deve ser livre de constantes reflexões e escrutínios, porque a possibilidade do erro e do autoengano estão sempre à porta. Como o apóstolo Paulo diria: “assim, aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia” (Bíblia, 1 Coríntios, 10,12).

IV

Considerações

A competência crítica em informação é uma aptidão desejável para uma consciência crítica amadurecida, que nos dá condições de avaliar e ponderar o caótico e cacofônico mundo informacional que nos cerca. Crê-se que tal competência não deva ser exclusividade de um grupo ou classe social específicos, mas deve, sim, ser compartilhada e ensinada nas sociedades constituídas. Presume-se que aquele que, supostamente, tenha alcançado uma consciência crítica amadurecida, possua noção de sua responsabilidade para com o seu semelhante — não uma noção de superioridade hierárquica e tutora, mas, sim, uma atitude humilde, que vise o entendimento mutuo e estimule a cooperação e compreensão entre os sujeitos. Como bem afirma Paulo Freire (1987): “não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade”. Portanto, o sujeito de hipotética consciência crítica amadurecida, deve ter o cuidado de considerar como seu semelhante qualquer estranho que, por acaso, tenha vindo parar em sua presença (Eagleton, 2010). Outra coisa que se deve levar em conta, é a questão de que a consciência crítica pode ser ineficaz caso esteja limitada a mente de uma só pessoa. Ora, como o indivíduo poderá perceber seus vieses e preconceitos se não há compartilhamento com o outro? Como o sujeito poderá descobrir novas ideias, se está enfurnado e trancado em suas próprias interpretações de mundo? A consciência crítica necessita do diálogo, pois “não existe ensinar sem aprender”, e “o aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições (Freire, 2001).

No entanto, deve-se ter consciência de que a atração da “ilha de ignorância” é forte, e que o medo do desconhecido é uma realidade presente, inclusive para aquele que se diz maduro em seu pensamento crítico. Pode ser que a não vigilância de nossas próprias crenças, mesmo que bem fundamentadas em princípios éticos ilibados, nos leve a tomar decisões questionáveis diante de uma ideia proferida por algum desafeto nosso. Ora, afirmar que um argumento é mau ou mentiroso porque foi proposto por algum adversário, sem considerar o conteúdo lógico do que foi dito, “é raciocinar de modo falacioso” (Copi, 1978). Ou ainda pode acontecer que, ao se encontrar no meio de uma grande pluralidade de ideias, sejam elas boas ou ruins, o pensador crítico, que não se deu conta de que estava preso em uma bolha de pensamentos afins, possa agir com insolência e soberba. Daí a necessidade da prudência, honestidade e humildade intelectuais em um mundo de incertezas e desinformações, sempre procurando perceber e evitar aquela manifestação perniciosa de um ego inflado, que leva a pessoa a se sentir diferente e virtuosa por herança (Freire, 1987). Caso contrário, reflexões e críticas, mesmo que bem fundamentadas — e bem-intencionadas —, se declaradas, ou escritas, de modo leviano e descuidado, não se importando com o entendimento alheio, podem levar a um aprofundamento na crença em desinformações.

É bem verdade que King Jr. (2020) afirma que “uma mente rigorosa é afiada e penetrante, rompe a crosta de lendas e mitos e separa o verdadeiro do falso”, e que é raro encontrar pessoas que se engajem “em pensamentos rigorosos e sólidos”. No entanto, o reverendo também diz que “não devemos nos contentar em apenas cultivar uma mente rigorosa. […] Rigor sem sensibilidade é uma coisa fria e distante, que mantém a vida em um inverno perpétuo, sem a calidez da primavera” (King Jr., 2020).

Talvez, observando o que King Jr. afirma, pode-se arriscar dizer que a consciência crítica necessita de alguma dose de amor. Amor para compreender que nem todos irão querer abandonar a plácida e pacífica ilha de ignorância, e amor para perdoar as injúrias e difamações que recaem sobre aqueles que insistem em ensinar. Eagleton (2010) escreve que “o perdão é uma ruptura gratuita do circuito das equivalências exatas, ou do olho por olho e dente por dente, e, portanto, é uma antecipação da morte dentro das simetrias reguladas do presente”. O perdão mata a ofensa do ofensor. Bonhoeffer (2016) ainda escreve que “o amor não deve perguntar se é correspondido, mas procurar quem carece dele. Quem mais necessita de amor senão aquele que, sem amor, vive no ódio? Quem, portanto, seria mais digno de amor que meu inimigo?”. Pode-se considerar inimigo aquele não-amigo, que, alienado de sua própria consciência, massificado e massacrado por ideias e ideais autoritários, ataca aqueles que ousam, corajosamente, buscar verdades que podem fazer estremecer as estruturas de crenças há muito estabelecidas. O amor apresentado, tanto por Bonhoeffer quanto por King Jr. remete a uma insistência teimosa e resiliente de uma esperança imortal que, mesmo diante da opressão avassaladora, enxerga uma saída conciliadora e libertadora entre os semelhantes. Paulo Freire aparenta concordar com isso ao escrever que não há diálogo sem um profundo amor aos homens e ao mundo (Freire, 1987).

Certamente este não é um amor de condições românticas e condescendentes, que é destituído de coerência e firmeza, mas é, antes, uma força transformadora e fortificadora do senso crítico, dando a este a robustez de uma reflexão que leva em conta a constante inconstância da realidade objetiva e circundante. Pode ser que, por meio do amor, o pensamento crítico consiga resistir à frustração e ao desgosto de perceber que a tolice — forte aliada da desinformação — é um adversário implacável e, possivelmente, impossível de ser vencida. Talvez, uma consciência crítica, banhada no amor ao próximo, consiga criar pontes reconciliadoras entre partes discordantes, já que o amor é condição para diálogo, como afirmado por Paulo Freire, além de ser um fator repleto de paciência para suportar constantes revezes e desapontamentos.

De fato, é curioso falar desse sentimento tão paradoxal ao se abordar o pensamento crítico em mundo de desordem informacional. Em uma realidade assim — ou, talvez, em qualquer realidade — o amor, essa força de passiva agressividade, que se indigna com ofensas, mas que é apressado em perdoar, nunca negando a necessidade da justiça e da transformação social, seja um elemento necessário a um pensamento afiado, ou, como diria King Jr., a um pensamento rigoroso. Pode ser que o amor seja um caminho para o amadurecimento do senso crítico, que permite a aproximação e a reconciliação de gentes tão separadas e dilaceradas por enganos e artimanhas perpetradas, ora por líderes autoritários, ora por grupos interessados em se manter onde estão.

O amor, aliado ao senso crítico, pode nos levar a pensar e refletir sobre o nosso tempo e espaço no mundo, nos trazendo reflexões sobre as estranhas incongruências das relações humanas, assim como apontamentos sobre as nossas próprias contradições.

A mentira — ou desinformação, como preferir — já corre solta nas sociedades humanas por muitos e muitos séculos, e provavelmente continuará sua jornada ardilosa entre os seres humanos por muitos outros anos. No entanto, uma consciência crítica amorosa, que leve em conta o ceticismo com relação às suas próprias crenças, e tendo a competência crítica em informação como ferramenta, poderá, quem sabe, ser capaz de atenuar os efeitos perniciosos da desinformação, tanto em nós mesmos, quanto em nossos semelhantes.

Referências

Barros, Daniel Martins de. (2020) O Lado bom do lado ruim. Sextante.

Bezerra, A. C., Schneider, M., & Brisola, A. (2017). Pensamento reflexivo e gosto informacional: disposições para competência crítica em informação. Informação &Amp; Sociedade: Estudos27(1). Recuperado de https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/31114

Bíblia Nova Versão Internacional. (2018). 1 Coríntios. Thomas Nelson Brasil.

Brisola, A.; Bezerra, A. C. (2018). Desinformação e circulação de “fake news”: distinções, diagnóstico e reação. Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciência da Informação, n. XIX ENANCIB. http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/102819.

Brisola, Anna Cristina C. de A. S. (2021). Competência crítica em informação como resistência à sociedade da desinformação sob um olhar freiriano: diagnósticos, epistemologia e caminhos ante as distopias informacionais contemporâneas.  https://ridi.ibict.br/handle/123456789/1165.

Bonhoeffer, Dietrich. (2016). Discipulado. Mundo Cristão.

Bonhoeffer, Dietrich. (2003). Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Sinodal.

Capurro, Rafael. (2010). Desafios teóricos y prácticos de la ética intercultural de la
información. <http://www.capurro.de/paraiba.html>.

Copi, Irving M. (1978). Introdução à lógica. Mestre Jou.

Eagleton, Terry. (2010). O Problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Civilização Brasileira.

Elder, Linda; Paul, Richard. (1996). Critical thinking development: a stage theory with implications for instruction. https://www.quia.com/files/quia/users/medicinehawk/1607-Thinking/development.pdf.

Entidade Reguladora para a comunicação social. (2019). A
Desinformação: contexto europeu e nacional. https://www.parlamento.pt/Documents/2019/abril/desinformacao_
contextoeuroeunacional-ERC-abril2019.pdf.

Fonseca, Eduardo Giannetti da. (2005). Auto-engano. Companhia.

Freire, Paulo. (2001). Carta de Paulo Freire aos professores. Estudos avançados. 15 (42), 259-268. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142001000200013.

Freire, Paulo. (1987). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.

Froehlich, Thomas. (2020). Ten Lessons for the Age of Disinformation. Advances In Media, Entertainment, And The Arts. 36-88. http://dx.doi.
org/10.4018/978-1-7998-2543-2.ch003.

Gasque, Kelley Cristine Gonçalves Dias. (2012). Letramento informacional:pesquisa,
reflexão e aprendizagem. Faculdade de Ciência da Informação;
Unb, http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13025/1/
LIVRO_Letramento_Informacional.pdf.

Gracián y Morales, Baltasar. (2003). A Arte da prudência.
Sextante.

Guzzo, Guilherme Brambatti; Lima, Valderez Marina do Rosário. (2018). O Exercício do pensamento crítico em face dos vieses cognitivos. In: Concgresso Ibero-Americano de Docência Universitária. 10. http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/15072/2/O_EXERCICIO_DO_PENSAMENTO_CRITICO_EM_FACE_DOS_VIESES_COGNITIVOS.pdf.

Hogg, Michael A. (2019). Mudança radical: as incertezas globais ameaçam nosso senso de eu. Para lidar com esse quadro, as pessoas abraçam o populismo. Scientific American.18 (201), 42-45.

Kahneman, Daniel. (2012). Rápido e devagar: duas formas de pensar. Objetiva.

King Jr., Martin Luther. (2020). A Dádiva do amor. Planeta.

Lovecraft, Howard Phillips. (2014). O Chamado de Cthulhu. In Luís Dolhnikoff (org.), Os Melhores contos de H. P. Lovecraft. (pp. 66-101).  Hedra.

Mello, Felipe Correa Oliveira de. (2022). Autorreflexão, reflexão e ética: o papel da competência crítica em informação na defesa contra a desinformação. In Arthur Coelho Bezerra, & Marco Schneider (org.), Competência crítica em informação: teoria, consciência e praxis. (pp. 87-96). Ibict. https://ridi.ibict.br/bitstream/123456789/1200/1/Bezerra%20%26%20Schneider%20-%20Compet%c3%aancia%20Cr%c3%adtica%20em%20Informa%c3%a7%c3%a3o%20%282022%29.pdf.

Merton, Robert K. (2013). Ensaios de sociologia da ciência. 34.

Neumann, Franz. (2017). Angústia e Política. Dissonância: Teoria Crítica e Psicanálise, 01,104-154.

Pilati, Ronaldo. (2021). Ciência e pseudociência: por que acreditamos apenas naquilo em que queremos acreditar. Contexto.

Plous, Scott. (1993). The Psychology of judgment and decision making. McGraw-Hill.

Posetti, Julie; Matthews, Alice. A. (2018). Short guide to the history of ‘fake news’ and disinformation: a learning module for journalists and journalism educators. Icfj, 2018. https://www.icfj.org/sites/default/files/2018-07/A%20Short%20Guide%20to%20History%20of%20Fake%20News%20and%20Disinformation_ICFJ%20Final.pdf.

Sagan, Carl. (2008). Contato. Companhia das Letras.

Sagan, Carl. (2006). O Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia das Letras.

Santo Agostinho. (2019). A Mentira – Contra a mentira. Paulus.

Schneider, Marco. (2019). CCI/7: competência crítica em informação (em 7 níveis)
como dispositivo de combate à pós-verdade. In
Arthur Coelho Bezerra, Marco Schneider, Ricardo M. Pimenta, Gustavo Silva Saldanha. IKrítica: estudos críticos em informação. estudos críticos em informação. (pp. 73-116). Garamond.

Seth, Anil K. (2019). Nossos universos interiores: a realidade é construída pelo cérebro, e não existem dois cérebros exatamente iguais. Scientific American. 18 (201), 27-33.

Wardle, Claire. (2018). Information disorder: the essential glossary. Havard Kennedy School – Shorenstein Center On Media, Politics And Public Policy, https://firstdraftnews.org/wp-content/uploads/2018/07/infoDisorder_glossary.pdf?x20994.

Wardle, Claire. Derakhshan, Hossein. (2017). Information disorder: toward an
interdisciplinary framework for research and policy making. Council Of
Europe. https://rm.coe.int/information-disorder-towardan-interdisciplinary-framework-for-researc/168076277c.

Rolar para cima